quinta-feira, 28 de junho de 2012

Duas mulheres.


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Margarida Lopes
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Técnica superior de serviço social, 38 anos, Azambuja
 

- Qual foi a maior prova de amor que teve até hoje?

No ano passado, no Dia dos Namorados, o meu marido convidou-me para almoçar. Quando me sentei no restaurante tinha um envelope dentro do meu prato. Era um bilhete de viagem para partir daí a três dias para Roma. Ele tinha planeado tudo para uma viagem a dois. Marcou o hotel e falou com os avós que ficaram com os três netos. Gostei muito.

- Há casais que descuram a relação por causa dos filhos?

Acho que há casais que não sabem separar as coisas. Tenho amigos que têm dificuldade em sair sozinhos e deixar os filhos com os avós. É importante que o casal tenha o seu espaço. Faço viagens sozinha com o meu marido e depois em conjunto com os nossos filhos. Tem que haver espaço para o casal e para a família. De outra forma a relação desgasta-se e muitas vezes acaba em divórcio. Há pessoas que dizem que os filhos prendem casamentos, mas acho que não. O casal tem que dar-se muito bem ou os filhos podem ser grandes motivos de discórdia.

- Ir ao supermercado é um sacrifício?

Não tenho qualquer prazer em ir ao supermercado e só o faço por necessidade. Vou normalmente com o meu marido, porque é difícil fazer compras para cinco pessoas, e com os meus filhos. Para nós é quase já um programa de família.

- Qual deveria ser o valor do ordenado mínimo nacional?

Não deveria ser menos de 600 euros para que se pudesse viver condignamente. No nosso concelho temos muita gente a viver com o ordenado mínimo e com muita dificuldade. Para um casal que recebe apenas isso e paga 400 euros de renda ou empréstimo é preciso uma grande gestão do bolo familiar para pagar as despesas e sobreviver até ao fim do mês.

- Se não tivesse emprego seria capaz de emigrar?

Não teria qualquer problema em mudar de vida, de emprego e até de país. Com o meu marido já é diferente. É muito ligado à terra. Adora viver em Azambuja e para ele isso estava fora de questão.

- Sofre com os jogos da selecção?

Sofro imenso. No jogo Portugal/ República-Checa ia tendo um ataque. Nos primeiros dez minutos a minha vontade era mudar de canal até que felizmente a selecção começou a melhorar a táctica de jogo. Ficamos todos colados à televisão. Não fomos jantar enquanto o jogo não acabou. Gritámos golo de cada vez que a bola batia na trave ou passava ao lado.

- E se um dos seus filhos lhe dissesse que queria ser toureiro?

Já dizem! O meu filho de dois anos não vê desenhos animados. Passa o dia inteiro a ver corridas de toiros na televisão. Gravo o programa Arte e Emoção e as corridas para ele ver. Uns dias diz que quer ser forcado e nos outros diz que quer ser cavaleiro. Isto acontece desde os 12 meses. Chora quando as irmãs mudam de canal. Agora vejo com graça mas futuramente não sei se verei com bons olhos, apenas pelo perigo que representa uma profissão destas. A mais velha diz que quer ser cavaleira mas espero que não passe igualmente de um delírio de criança.

- Se encontrasse o ministro das Finanças na rua o que lhe diria?

Diria que não gostava de estar no lugar dele. Tem uma tarefa muito difícil pelas dificuldades em que o país se encontra. Teria que lhe dar os parabéns porque aceitou um cargo que eu nunca aceitaria por esse motivo. Ainda assim tem conseguido ir levando o barco a bom porto.

- Tem algum animal de estimação?

Temos uma tartaruga e um pássaro lá em casa. Já tivemos um cão que me ofereceram dizendo que nunca passaria dos quatro quilos. Ao fim de cinco meses tinha quase nove quilos e destruía-me a casa toda (risos). Tive que pedir aos meus pais que ficassem com ele. Num apartamento não tínhamos condições para o ter. Chegou a fazer buracos no betão da varanda. Prometi aos meus filhos que no Natal arranjaria um cão de raça pequena…
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Margarida Lopes tem uma vida normal, as suas respostas a um questionário do jornal Mirante são serenas, ecoam a felicidade tranquila de uma existência boa e simples. E quem ler a entrevista de Margarida Lopes e confundir “simples” e “simplória” é porque não entende nada de simplicidade.
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Há mais de quarenta anos, esta rapariga alemã, Gabriele Köpp, foi repetida e brutalmente violada por soldados do Exército soviético. Tem hoje 80 anos, 29.200 dias. Desses dias todos, recorda apenas 14, duas semanas. Duas semanas apenas desfizeram uma vida inteira. Aos 80 anos, Gabriele Köpp decidiu contar os abusos sexuais de que foi vítima. É primeira mulher alemã que o faz em livro sem recorrer a um pseudónimo. Pode ler a história aqui, na edição em língua inglesa do Der Spiegel.
 
Naquelas duas semanas, os homens que violaram uma adolescente talvez nem se tenham apercebido do que estavam a fazer a uma vida inteira, para sempre. Provavelmente, esqueceram-se logo do que tinham feito àquela rapariga de quinze anos. Já todos morreram, quase de certeza. Hoje são pó e areia, mas enquanto por cá andaram fizeram o que fizeram. Estima-se que cerca de 2 milhões de mulheres alemãs tenham sido violadas nos últimos dias do III Reich. Nada disto faz sentido nenhum, nenhum sentido. 

A única coisa com sentido que encontrei esta noite chama-se Margarida Lopes – e juro pelo que há de mais sagrado que não estou a ser sarcástico ou demagógico. Margarida Lopes e a sua família foram o único motivo capaz de me fazer acreditar em alguma coisa, que nem sequer ouso chamar “Humanidade”. Gabriele Köpp poderia ser Margarida Lopes. Não, não é um jogo de palavras nem um artifício retórico, longe disso. Em duas semanas, 14 dias apenas, alguns homens, hoje mortos, tiraram a Gabriele Köpp  o simples direito a uma vida boa e simples, como é a vida de Margarida Lopes. Gabriele doutorou-se em Física, foi professora universitária, conviveu com vários prémios Nobel. Mas durante toda a vida foi incapaz de amar um homem e formar família.   

Pouco existe de semelhante entre a catedrática aposentada que habita sozinha em Berlim e a técnica de serviço social que vive com a família na Azambuja. Um traço comum: são ambas mulheres. Porque é que eu tinha de ser rapariga?, é o título amargo do livro de Gabriele Köpp.  

As duas histórias das duas mulheres vieram parar ao meu computador no mesmo dia, hoje. Quem julgar que as juntei para manipular sentimentos alheios não percebe nada do sinto ou sou.  


António Araújo

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