quinta-feira, 26 de julho de 2012

Verão Quente (1ª parte).

.
.
.



.
.
.

Não é fácil escrever sobre um livro cujo protagonista principal são mamas. Em Verão Quente, de Domingos Amaral, entram em cena Julieta, mulher que cegou em 1975 e miraculosamente voltou a ver em 2003, a sua filha, de nome Redonda, o marido desta, Tomás, e um narrador inominado, ou seja, o palerma de serviço que o Grupo LeYa contratou para contar esta historieta. Mas, como se disse, a personagem central de Verão Quente são as mamas. E todas elas muito boas. Colocadas ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico, solitárias ou aos pares, as mamas irrompem inúmeras vezes neste livro, convertendo os mamilos no ponto fulcral da narrativa, em torno do qual gravitam todos os demais actores, por aplicação de um princípio elementar da Física: a lei da atracção das massas.   

Como o autor adverte logo a abrir, na página 18, “mesmo que não queiramos, nós, homens, olhamos logo para as mamas de uma mulher”. E acrescenta: “É uma coisa instintiva, primitiva”. O livro não engana, concretizando esse seu primitivismo na descrição do peito de todas as personagens femininas que vão aparecendo na novela.

No início, o narrador depara com uma mulher jovem, “uma subtil predadora”, que, “quando se movimenta, as suas mamas mais gloriosas me parecem”. A detentora destas gloriosas mamas chama-se Redonda, nome singular cuja semântica é explicitada logo na página seguinte. Assim, na página 19 somos informados que Redonda possui “mamas redondíssimas”. Bem poderiam ser quadradas ou cilíndricas as mamas de Redonda, mas são redondas ou, superlativamente dizendo, “redondíssimas”. Um pouco mais adiante, a rapariga exibe “o peito em todo o seu esplendor” (p. 52), enquanto solicita um vodca-morango no bar de um hotel termal (o narrador mantém-se na cerveja). A sua mãe, Julieta, percebendo a perturbação causada no narrador pelo peito da filha, avisa-o que ela “tão depressa abana as maminhas para si, como vai correr a telefonar ao marido. É ambígua” (p. 70). Esta informação fez aumentar no narrador o “desejo de a comer” (p. 70). Compreensivelmente, o marido de Redonda, um clássico Tomás, aparece no hotel termal para pôr termo à ambiguidade da esposa. Junto à piscina, faz um gesto de aviso, aponta para o seu próprio peito, grita à legítima: “Redonda!” Porquê tanto alarido? É que Redonda tinha um mamilo à mostra, “escapado ao pano do biquíni”. Tomás, como se jogasse à macaca num jardim-escola, dá “um passo em diagonal”. Assim, ao narrador não seria  “dado o privilégio de observar o seio nu da mulher”. A rapariga, “consciente do esforço titânico do marido”, desfere uma risada. E, enquanto “recoloca o tresmalhado mamilo dentro do biquíni”, comenta, muito fina e própria: “Este está sempre a vir à janela, a ver quem passa…”. Tudo isto se passa na página 94. Na despedida, cinco páginas à frente, Redonda dá um “longo e demorado beijo na boca” ao narrador, no parque de estacionamento do hotel. E até ali, junto ao veículo ligeiro, as irrequietas mamas de Redonda intersectam de novo o discurso ficcional: “Sinto o seu peito apertar-se contra o meu ombro e o meu braço esquerdo, um peito quente, de uma dureza meiga. Incapaz de me travar, levo a minha mão direita ao seu seio esquerdo, e toco-o, excitado. Consigo afastar ligeiramente a copa do biquíni e afago o seu mamilo esquerdo, o mesmo que tinha visto na piscina. Sinto-o endurecer em segundos, enquanto a respiração se torna mais ofegante”. Redonda recua, porém, e põe o mamilo esquerdo – sempre o mamilo esquerdo – no seu devido lugar. “É o que eu digo, este está sempre a vir à janela”, conclui Redonda. O tresmalhado mamilo esquerdo de Redonda possui vida própria, assemelhando-se a um adolescente rebelde. Redonda “fala do mamilo como se ele fosse um rapazinho, impedido por ordens superiores de sair à rua, mas que, morto de curiosidade, não se consegue conter e vem à janela espreitar” (p. 94).

Em matéria de mamas, a mãe de Redonda, D. Julieta, também não se encontrava mal servida. Quando o grupo se reúne de novo, já em Lisboa, Julieta aperta o narrador “contra o seu peito com força” (p. 107). Ainda assim, a crer no testemunho de Paulo, um advogado e amigo do narrador, a filha conquistava primazia peitoral sobre a mãe, graças às suas “mamas fantásticas!” (a que acresciam outras competências curriculares: “faz uns belos bobós!” – p. 120).

O narrador anda literalmente às apalpadelas ao longo de todo o livro. Na página 120, recorda, de si para si, que Redonda lhe tinha permitido que “a tocasse nas mamas”. Daí que, após esse episódio, depois “da mão na maminha”, existissem aquilo que designa por “mínimos essenciais”. Ora, Redonda não cumpria os serviços mínimos essenciais. Tratava o avençado da LeYa com indiferença e até, imagine-se, com distanciamento. Destroçado, o alter ego de Domingos Amaral filosofa então sobre o lugar do amor na existência terrena:



“O amor não é um ato de fé: é uma construção entre dois seres humanos, feita de emoções, palavras, toques, cheiros, presenças e também sexo. Se nada disto tem oportunidade de existir, não é possível haver amor. Podem existir fantasias e desencontros, mas não amor, e sem ele não há futuro possível. Podemos desejar alguém que ainda não possuímos, mas não amamos essa pessoa, pois amar é querer estar junto de alguém, e não podemos amar quando não estamos”.



Foi este pensamento profundo explanado a páginas 130, quando o narrador, no tocante a mamas, tinha apenas manuseado levemente o mamilo esquerdo de Redonda, no parking de um estabelecimento termal nos arredores de Coimbra. Estava em baixo, o rapaz. Às tantas, explode: “não suporto nem mais um segundo vê-la sem a possuir” (p. 93).  Ora, perante a frieza da filha Redonda, que fazer? Virar-se para a mãe Julieta, claro está. Até aí, e já vamos quase a metade do livro, só tinham surgido duas personagens femininas (descontando uma massagista do hotel, Soraia, que na página 37 “tocara agradavelmente” nos testículos do narrador, provocando-lhe “um princípio de animação sexual”). Pois com o jogo a meio-tempo e só havendo duas mulheres em campo, Redonda e Julieta, que restava para que o enredo prosseguisse? Que o narrador descobrisse as mamas da Julieta, está visto. E assim sucede, a bem da acção. Página 143: “nunca tinha reparado no seu peito. Ou por outra, sentira-o, as elevações debaixo dos vestidos, as costuras do soutien quando a amparei no primeiro dia. Mas era como se o seu peito fosse assexuado. Hoje, já tem sexo. Ela possui umas boas mamas, tal como a filha. E sabe-o, por isso entreabre a camisa, orgulhosa, mostra um biquíni por baixo, que lhe aperta os seios, os enche e puxa para cima. Por momentos, sinto-me atraído por aquele peito, como me senti, e ainda sinto, pelo da filha” (p. 143). A cena decorre agora num spa da capital. É aí que a mãe da Julieta se apropria do narrador, em detrimento da filha, nacionalizando-o selvaticamente sem pagar sequer a justa indemnização. Justifica-se perante Redonda com um argumento irrespondível, e de delicado recorte: “A menina quer ficar com os homens todos? Não lhe chega o seu marido? Ou ele não dança como deve ser? […]. Olhe, sabe o que eu lhe digo: quem vai ao mar perde o lugar! É assim. Aqui e em todo o lado!” (p. 147). Como escritor, Domingos Amaral comete erros de português (v.g., o muito vulgar “pese embora”, a p. 104) mas, a dar as tácticas às personagens num romance endiabrado, tem indiscutíveis talentos. Seguindo as suas directrizes, o narrador passa agora a prestar mais atenção às mamas de Julieta, concluindo a páginas 148 que a senhora, bem vistas as coisas, “tem um belo peito, cheio”. Aliás, já sete páginas antes, Julieta aparecera ao narrador, vestida “de calções curtos”, com “uma camisa colorida e aberta, que exibe o peito”. Uma novela in pectore.   

Dona de um “peito farto” era também Ângela, uma “lindíssima moça” de 16 anos, próxima do MPLA, que em 1974 vem para Portugal, importada por Álvaro, que com ela passara “duas noites tórridas” em Luanda. Antigo “capitão de Abril”, Álvaro estava agora “pelo beicinho” de Ângela, “uma mulher negra, muito bonita e vistosa, bem vestida, cheia de colares e anéis”. No léxico de Verão Quente, tinha “o corpo em boa forma, pernas musculadas, peito farto, andar de gazela”. Em suma, “um mulherão”, “uma força da natureza”, que o marido, Álvaro, diz que “parece uma preta americana, dos telediscos” (p. 169). O narrador corrobora esta impressão, classificando Ângela como “uma Beyoncé lusitana” ou, em linguagem do Técnico, “um dínamo de energia”. Eis, pois, em breves linhas, a “energética e poderosa Ângela” (p. 221). E quanto ao que interessa, as mamas, ó Dona Ângela? Grandes, claro. A própria o reconhece quando, já íntima de Julieta, no final, lhe empresta um biquíni: “O meu número dá de certeza, temos ambas as mamas grandes!”, diz Ângela.  

Regressemos à infortunada Julieta. Aos 55 anos de idade, cega durante décadas, encarcerada anos e anos por um crime que não cometera, Julieta não compreendia a contemporaneidade pós-revolucionária. Até Domingos Amaral, escritor português nascido em 1967, se mostra perplexo ante as mudanças ocorridas no seu país: “Imagine-se o choque de uma mulher ao voltar a ver em 2003! Julieta descobre em semanas o que o país descobriu ao longo de vinte e oito anos: a televisão a cores e os DVD, os telemóveis e os sms, a Internet  e os e-mails, as autoestradas e a Via Verde, os centros comerciais com centenas de coloridas lojas, a banca privada e o multibanco, os condomínios com piscina e os spa, e também os milhares de automóveis que enchem as nossas ruas. É como se, de repente, ela entrasse numa máquina do tempo e fosse atirada vinte e oito anos para o futuro!” (p. 13). Back to the Future. Entre as maravilhas dos novos tempos democráticos, não referiu o autor, modesto, uma das mais relevantes conquistas de Abril: as charlas humorísticas de Domingos Amaral. Com esta, já foram publicadas sete.  

No domínio sexual, Julieta, que critica a filha por ser “ambígua”, dá também ela sinais de alguma ambiguidade. Marcada pelo “retorno de um certo humanismo perdido” (p. 14), Julieta Silva Arca é uma mulher desconcertante, “um tratado” (p. 245, expressão repetida a p. 319). De facto, ficamos surpreendidos com esta senhora, que tanto dá gritos orgásticos no Hotel do Chiado como a seguir se benze quando lhe falam do nome do doutor Oliveira Salazar. Há duas julietas neste romance bucólico. A Julieta que diz para o narrador erecto, na página 244: «Quero mais, na boca». E a Julieta que, na página 271, se persigna, indignada, quando vilipendiam a sagrada memória do Presidente do Conselho: “– Este santo homem, que tanto fez pelo nosso país!”. O livro é inverosímil de uma ponta à outra. Mas tem muitas e muito boas mamas.   

Julieta reprovava as atitudes das mulheres mais novas, que a antiga invisual apelida de “homens com mamas”. Isto na página 171. Ao virar da folha, mantém-se a sempiterna obsessão do narrador com o peito de Redonda, recordando que lhe havia dado “um apalpão numa mama” e teimando, na mesma página, que a tinha “apalpado na mama”. Já tínhamos percebido, Domingos (mas ele insiste, muito mais adiante: na página 223, o narrador ainda recorda saudosamente o apalpão dado no parque de estacionamento). Avança-se depois para outra digressão filosófica: “No jogo sexual, o vencedor é quem tem a sorte de não ser atingido primeiro pelo raio de Cupido” (p. 173). Que raios mandará Cupido é coisa que não sabemos, já que sempre ouvimos dizer, até chegarmos ao Verão Quente, que Cupido lançava setas, não dispondo de concessão nem licença administrativa para operar no espaço radioeléctrico. Pelos vistos, agora Cupido lança raios. A vida custa a todos.

Com esta dos raios de Cupido quase nos desviávamos da obsessão mamífera que atravessa Verão Quente de lés a lés. Ao aproximarmo-nos vertiginosamente da página 200 a relação entre Redonda e o narrador continua a não arrancar. Até aí, entre ambos só houvera um beijo na boca e um apalpão no mamilo esquerdo, o que, convenhamos, é muito pouco para os padrões da Casa das Letras, uma empresa do Grupo LeYa. Julieta serve então de sucedâneo, veículo de substituição. Dá entrada em cena o dueto mamário de Julieta Silva Arca: “sinto o seu peito no meu cotovelo e é quente e macio” (p. 195). As coisas compõem-se, e sempre com o apoio das protuberâncias mamárias femininas: “Julieta reaparece. A transparência da sua camisa de noite permite-me examinar as suas formas. Veste cuecas mas não tem soutien, vejo os mamilos escuros e redondos, dois discos voadores que voam na minha direcção” (p. 203). Como num jogo de frisbee, o narrador agarra com ambas as mãos os OVNI’s carnudos que ao seu encontro se dirigiam: “só depois, quando a sinto a desejar, é que lhe toco no mamilo, que endurece, e ela geme”. Páginas depois, a senhora retrai-se, mostrando-se muito menos generosa quanto à disponibilização do seu peito aos leitores do Domingos Amaral: “Beija-me na cara, mas não me aperta como de costume, esborrachando-me contra o seu peito, para sentir as suas boas mamas” (p. 225).

Esta ideia-látex de que os apêndices mamários são uma arma de arremesso, feita de borracha, usada pelas mulheres nos seus jogos de sedução, é recorrente no imaginário de Verão Quente. Pululam referências à incomodativa prática de “esborrachar” os homens: “esborrachando-me contra o seu peito” (p. 151); “Esborrachou as mamas contra ti, pá!” (p. 153); “ela esborrachou-se literalmente contra o seu peito” (p. 159); “esborrachando-me contra o seu peito, para sentir as suas boas mamas” (p. 227); “esborracha-se contra mim” (p. 246). Impera, pois, uma visão pneumática das mulheres, apresentadas como bonecas insufláveis ou colchões Repimpa, sempre disponíveis ao virar da página.  

O narrador passa o romance inteiro de Herodes para Pilatos, perdido entre as mamas da filha e as mamas da mãe. De peito em peito se entretece uma narrativa que, por montes e vales, entra a passos largos na ponta final. Ainda assim, as mamas, enquanto topoi literário, bases de sustentação do ritmo ficcional, continuam a ocupar um amplíssimo espaço no corpus conceptual desta obra. Julieta desdenha a mulher legítima do seu advogado e antigo amante, Raul. Para o efeito, socorre-se novamente dos seus argumentos toráxicos (ou torácicos): “Sim, sou bem melhor do que a mulher dele! Eu podia ser cega, mas ela? Parece uma tábua de passar a ferro!” (p. 241). Porém, esta autoconfiança de Julieta no poder das suas mamas desvanece-se logo na página seguinte. Aí, entra à compita com a própria filha, interpelando o narrador: “As mamas delas são maiores que as minhas?”. O rapaz, coitado, tentando segurar o emprego no Grupo LeYa, sustenta, com falsidade, que nunca na vida observara as mamas de Redonda. Julieta contesta: “Mentira, já as apalpaste uma vez! São melhores do que as minhas?”. Julieta Silva Arca, filha de Dom Rodrigo Silva Arca, continua insegura quanto à dinâmica de suas mamas. Confronta-as com as da sua filha, a portentosa Redonda, e com as da sua irmã, a defunta Madalena. A disputa mamária é então verbalizada em diálogo com o narrador: “Tenho de reconhecer: as dela e as da tia são melhores do que as minhas!”. Aliás, já antes, muito antes, Julieta dissera ao narrador que Redonda se assemelhava à sua tia, “com aquelas maminhas enormes” (p. 68), lamentando-se, melancólica: “Há dias em que tenho pena de que a Redonda só tenha herdado as maminhas da tia” (p. 69).

Após proferir aquela afirmação peremptória (“as dela e as da tia são melhores do que as minhas!”), a dúvida, torturante, instala-se de novo no atormentado espírito de Julieta. Arqueando as sobrancelhas, pergunta ao narrador: “Somos um bocado putas, não somos? Nós, as mulheres”. Não encontrou o rapaz melhor resposta do que esta: “Um bocadinho. Mas não de mais. Na conta”. Na conta de Verão Quente, o último romance de Domingos Amaral, é insofismável que todas as mulheres são, de facto, um bocado putas. Pelo menos, são apresentadas como tal: boas de mamas, mas ardilosas e interesseiras. “O amor e o interesse, nas mulheres, são quase sempre simultâneos”, diz-nos a página 249. Aliás, a desconfiança face ao sexo feminino é uma constante: “as mulheres têm a traição no coração ou sou eu que sou um descrente?”, pergunta o narrador na página 90.

A interrogação é legítima e pertinente, tendo em conta que, nesta novela, registamos o seguinte:

· Redonda, a filha, mantém relações sexuais com Tomás, com Paulo e com o narrador;
· Julieta, a mãe, embrulha-se carnalmente com Miguel, o marido, com o advogado Raul, com o narrador e novamente com o advogado Raul;
· Soraia, a massagista, sabendo estar grávida há uma semana, não hesita em tocar levemente nos testículos do narrador;
· Madalena, irmã de Julieta, tem sexo com Álvaro, seu marido, com Miguel, seu cunhado, com Bernardo Souto, com o arquitecto Damião, com o advogado Raul (que faz a dobradinha das irmãs), com o alemão Kurt e com mais uns tantos;  
· Ângela, a negra de Angola, a expectável pincelada multiétnica de Verão Quente, andou de conversas com um negro retinto, mas nada de grave, o mesmo sucedendo com a sua filha que, num almoço, percorre insistentemente o corpo do narrador, ainda que sem ponta de malícia.

Fechado este parêntesis, e de mamas, como vamos nós? Bem, sempre bem, sempre em grandes. Além das mamas, mas num plano secundário, actuando na retaguarda, os rabos também mostram as suas aptidões no Verão Quente. O de Redonda é, naturalmente, “um coração redondo e arrebitado” (p. 19). Será descrito mais pormenorizadamente na página 94: “umas fantásticas nádegas, que me imagino de imediato a montar”. Em todo o romance, perpassa uma fortíssima pulsão hípica, que nos abstemos de escalpelizar, pois não queremos desviar-nos do ponto sobre o qual agora dissertamos – os rabos. Se o rabo de Redonda é um coração arrebitado, o de sua mãe também tem os seus encantos. Ao olhar para Julieta, de costas e de biquíni (neste romance, 90% do tempo as personagens actuam em fato de banho), o narrador observa: “Apesar de ter, aqui e ali, alguma celulite, as nádegas não estão descaídas, mas sim viçosas e arredondadas. Mãe e filha têm um rabo parecido, é o que eu acho mas não digo, não vão ambas ofenderem-se”. Julieta não se ofende quando, a páginas 204, o narrador lhe passa as mãos “pelo rabo”. Na página anterior, já o rabo de Julieta dera prova de vida: “Desço a minha mão pelas suas costas, chego ao seu rabo e aperto-o um pouco, como se o puxasse para mim” (p. 203). Depois, com a filha, Redonda: “agarro-a pelo rabo e aperto-a contra mim” (p. 291); sobem ambos em direcção ao quarto, a correr, com “ela à frente e eu a dar-lhe palmadinhas no rabo” (p. 291). É apenas isto, não mais, o que este livro suscita e merece: umas palmadinhas no rabo.    

Depois das mamas e dos rabos, entra o pénis. A genitália do narrador é convocada algumas vezes, poucas, para o interior da narrativa e das suas personagens femininas. O escriba, porém, não mantém uma relação fácil com o seu aparelho reprodutivo. “O meu baixo-ventre lembra o de uma dançarina feia, peluda e disforme, num processo transformista onde a minha sexualidade se altera apenas por obra de um minúsculo acessório” (p. 37). Este é um momento-chave da narrativa, o momento Michel Houllebecq de Verão Quente.

Na noite em que conhece Redonda, o narrador vive um cruciante dilema. Acordado a meio da madrugada, “torturado pela insónia”, pensa masturbar-se. Estava “enfeitiçado por uma fantasia sexual” em que Redonda era a protagonista. No entanto, não cede ao apelo onanista: “num arremesso de lucidez, luto contra essa solitária capitulação. Se o fizer, ela vence-me. Se recusar, é minha a vitória naquele combate mental. É difícil, o tesão é muito, mas lá me aguento” (p. 61). São grandes, dilacerantes, as tensões existenciais que se vivem nos hotéis da região de Coimbra. Já agora, onde Domingos Amaral escreve “arremesso de lucidez” talvez quisesse dizer “arremedo de lucidez”. Ou não?   

Abandonado no seu quarto, o narrador só tem por companheiro o seu pénis (e, estamos em crer, os habituais pistachios do minibar). Inicia-se então um diálogo a três, workshop académico ou cimeira íntima em que intervêm, por esta ordem, o narrador, o seu órgão genital e a voz da consciência, espécie de grilo falante que procura, a muito custo, domesticar o falo grilante. “Ela é linda, não devo lutar por conquistá-la?”, pergunta o narrador à plateia. Entra agora o zézinho: “Claro que sim, responde o meu pénis, erecto e cheio de sangue quente”. Armada em desmancha-prazeres, a consciência judaico-cristã atalha firme: “Atenção, lembra uma vozinha na minha cabeça, questionando as minhas intenções. O meu desejo é apenas comê-la ou estou disponível para me dedicar a ela?”.   

Para buscar resposta a esta e outras interrogações, Domingos Amaral desenvolve então uma complexa teoria sobre a infidelidade. Inclinado a taxonomias e classificações, como se estivesse a escrever uma sebenta de Direito Administrativo, apresenta a pp. 62-63 três tipos de infidelidade, em numeração romana: 

· Infidelidade de tipo I – “interior, subjectiva”, “muito comum, mas não especialmente grave”. Acontece, por exemplo, quando dá a “uma mulher casada fantasiar com o Brad Pitt, ou um homem com a Gisele Bündchen”;

· Infidelidade de tipo II -  “inclui as trocas de olhares furtivos, as conversas marotas, os sms brincalhões, mas sem existência de contactos físicos íntimos”. Nesta modalidade, as pessoas “comem-se com os olhos” mas, ainda assim, “não consumam a relação”. Do ponto de vista dos efeitos matrimoniais, “é a infidelidade que não mata, mas mói”;

· Infidelidade de tipo III – aí, cuidado, pois “a relação passa a física”. Incluem-se no cardápio: “beijos, apalpões, sexo oral” – “tudo isso conta como infidelidade de tipo III”. Mas, está claro, nesta paleta variada existem matizes subtis, nuances, até madeixas louras. Domingos Amaral capta-as de forma certeira: “É claro que um leve beijinho na boca não é um broche feito à pressa num carro, e um apalpão nas mamas não é o mesmo que uma canzana, mas a minha fronteira para classificar a infidelidade de tipo III começa nos pequenos gestos físicos, nas festinhas, nas mãos dadas, no beijinho atrás da orelha, no linguadito rápido que nunca chegou a chocho. A partir daí é um pulo rápido até ao ‘sexo com tudo incluído’” (p. 63).

Eis-nos perante uma página notável da Literatura Portuguesa. Em meia-dúzia de linhas, numa prosa escorreita e directa, sem rodeios nem tergiversações, Domingos Amaral expõe, de forma cristalina, cartesiana, uma Teoria Geral da Infidelidade de Tipo III. Analisa metodicamente os mais variados géneros e subtipos da Infidelidade de Tipo III, surpreendendo cambiantes inesperados entre o beijinho na boca e o beijinho atrás da orelha, distinguindo espécies piscícolas (o “linguadito” vs. o “chocho”) ou advertindo o leitor para a radical diferenciação ontológica entre, por um lado, o apalpão nas mamas e a canzana, por outro lado. Apenas num ponto o texto se afigura pouco original e criativo. A Cultura Ocidental tem por adquirido, desde há muito, que a categoria linguística “broche feito à pressa num carro” se inscreve no âmbito da Infidelidade de Tipo III.

O livro apresenta, por assim dizer, uma visão espeleológica da sexualidade. Apesar do título, em Verão Quente sentimos sempre o fresco húmido das Grutas de Mira d’Aire. À semelhança dos mineiros de Aljustrel ou da Panasqueira, os homens de Verão Quente estão sempre dentro das mulheres, desbravando cavernas e percorrendo entranhas, numa incessante descoberta de novas e novas galerias. Esta é uma obra grottesca, na mais pura e etimológica acepção da palavra. A expressão “estar dentro” de uma mulher é reiteradamente usada, remetendo para uma Weltanschauung em que o corpo feminino é encarado como um receptáculo, um vazadouro municipal de fluidos corporais alheios, ecoponto do sémen, ETAR da masculinidade pós-moderna. Julieta “há muito que não sente um homem dentro dela” (p. 202). O narrador confessa que “um homem, dentro de uma mulher, esquece-se de tudo” (p. 218). Julieta recrimina-o, por lhe ter dito coisas bonitas, mas falsas, quando estava dentro dela (“Já se esqueceu do que me falou ao ouvido, quando estava dentro de mim?” – p. 238). O rapaz desculpa-se, de si para si: “um homem quando está dentro de uma mulher diz tudo”. Uns tempos depois, já o narrador está dentro da filha, Redonda: “abraço-a outra vez, toco-a, entro dentro dela, as nossas respirações aceleram” (p. 292). Estava o rapaz dentro de Redonda quando são surpreendidos, no quarto, por um homem-rã. Um homem-rã sem barbatanas, mas ainda assim um homem-rã. Nas mãos, o homem-rã tinha uma pistola, que apontava para o narrador, o qual, repete-se, estava encravado dentro de Redonda. Se estivermos dentro de uma pessoa, e se um batráquio nos apontar uma arma, convém sairmos cá para fora quanto antes. Foi o que fez o narrador: “saí de dentro de Redonda” (p. 292). Mas, pouco depois, está de regresso aos interiores da sua amada. Na penúltima página – só na penúltima! –, mete-se “finalmente dentro dela” (p. 318). Com coisas sempre dentro de coisas, Verão Quente subverte todos os cânones e inaugura um novo género romanesco mundial: a literatura Tupperware.  



(Continua)

13 comentários:

  1. :) Não tinha ideia de que o livro pudesse ser assim...não tinha pensado comprá-lo e não mudei de ideias, mas estou é a considerar mudar o meu nickname na blogosfera...

    ResponderEliminar
  2. Desde a descoberta da Vénus de Willendorf que é geralmente aceite que a obcessão com mamas existe desde os primórdios da Humanidade e que portanto que ela tenha tão grande destaque em "Verão Quente" não deve ser motivo para admiração .Aliás quer Freud quer Jung escreveram extensivamente sobre o assunto e não é prudente para um leigo tentar entrar nele às apalpadelas.
    Quanto ao simpático livro propriamente dito ,acho que autor procura um delicado equilibrio entre ordinarice e erotismo com umas pinceladas aqui e ali de surrealismo .
    Situa-se a acção numas termas nos arredores de Coimbra ,ou seja ,nem ao Norte nem ao Sul ,nem no litoral nem no interior profundo ,portanto rigorosamente ao Centro .
    Será accaso ou sintoma de outra pulsão profunda ?
    manuel.m

    ResponderEliminar
  3. Eu juro que, depois de assitir a uma entrevista ao Domingos Amaral naquele programa da SIC, cujo entrevistador é um senhor muito sorridente, pensei que o tema da obra era o Verão quente de 75, até porque DA disse que o tinha dado a seu Pai para que o lesse, pois é o seu principal crítico e bastante perfeccionista. Estou abismada, afinal, o Verão Quente de 75 é para DA similar à vaga de reprimidos que foram em massa ver filmes hard core- ah, está bem, já foi director da Maxmen, não foi?... O Avô da sua esposa deve estar a dar voltas na tumba, salvo seja, que Deus o Tenha em Paz! É triste observar-se fenómenos desses- com tanta gente com Verdadeiro Talento e estes meninos/meninas dão-se ao luxo de se acharem uns grandes escritores! Enfim, mais do mesmo- e o pior é que são os mesmos a abespinharem-se com a questão de Miguel Relvas e da Lusófona...
    Pronto, ao menos que conte com o patrocínio de alguma clínica de implantes mamários!

    ResponderEliminar
  4. " Verão Quente" 1ª parte, é um livro para alimentar a libido masculina (?) ou será para "compensar" quem tem " falta dela" ( libido), como um " vingança" "contra" o sexo feminino, qual sublimação efémera das pulsões não concretizadas?
    Pelo menos a função jocosa da visão redutora do ser feminino, deve se um " êxito" de vendas junto do setor masculino. " Missão" cumprida!
    Aguardemos pelo " Verão Quente" 2ª parte- será que vai glosar com a área masculina (?) e com os seus ditames fantasiosos e reprimidos?
    Não me parece, não vendia...
    Esta visão "empobrecida" das relações humanas é " comparável" à clemência do presidente do Irão, relativamente à mulher que foi violada, engravidou e estava no "corredor da morte" pelo " pecado" que cometeu...
    É engraçado como " alguns homens" colocam as mulheres que "gostam de sexo" no lugar de prostitutas, qual puritanismo masculino que coloca a mulher como esposa, mãe ( e criada para todo o serviço) enquanto que por fora "satisfaz" os seus "desejos carnais" com as outras...Ilações desnecessárias!

    ResponderEliminar
  5. Brilhante! Ansiosa pela parte II.

    ResponderEliminar
  6. Mas ele é uma espécie de Margarida Rebelo Pinto de calças?

    ResponderEliminar
  7. No meio de tanta indisposição mamária, cai a nódoa: os argumentos têm de ser torácicos, mesmo que venham do tórax.

    M.M.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ver, sff,
      http://letratura.blogspot.pt/2008/11/torcico-ou-torxico.html

      Obrigado

      António Araújo

      Eliminar
  8. António,
    Se o Domingos não fosse filho de quem é, mereceria sequer que alguém se dignasse a olhar para a deprimente capa do livro? Meu Deus, é um perfeito hino ao Pimba Nacional.
    Quem o via tão compostinho, nos corredores do liceu, nunca imaginaria o "homem de paixões tórridas". Valeu a pena apenas pela tu verve.
    A Vizinha

    ResponderEliminar
  9. Durante o Verão, no Brasil, levei e li o 'romance' «Quando Lisboa Tremeu», do mesmo Domingos e tanto eu como a minha esposa bocejamos enquanto o narrador nos conduziu por aquele labirinto de inverosimelhança e sordidez.

    Não há melhor por aí?!

    ResponderEliminar
  10. Caro Zé Carlos
    Ler o livro do Amaral foi projecto que nunca me passou pela cabeça.
    Confesso, no entanto, que os teus argumentos me lançam na perturbadora hesitação.
    Vejamos: i) uma competição de mamas, ganha pelas maternas, expropriadoras do macho de serviço sem justa indemnização; ii) um mamilo desenfreado que se tresmalha no ousado decote, e entra e sai, e entra e sai, numa cadência pouco inocente (mesmo para um ingénuo mamilo); iii) uma mulher chamada Redonda, com um redondo rabo em forma de coração arrebitado; iv) o arremesso da lucidez do macho narrador (e que falta ela faz ao pobre escriba!) para dentro da húmida gruta onde ingloriamente se despeja a masculinidade pós-moderna…
    Em suma, a tua luminosa crítica pode ter um efeito perverso.
    Abraço
    CQ

    ResponderEliminar