domingo, 23 de novembro de 2014

A verdadeira (e estranha) história de Wonder Woman.

 
 



Ao invés do Super-Homem, de Batman, do Homem-Aranha e de mais alguns super-heróis,  Wonder Woman  nunca teve circulação em Portugal. Podem cá ter chegado alguns exemplares da sua versão brasileira  “Mulher-Maravilha” mas não conseguiram formar um verdadeiro culto. Nem mesmo os episódios televisivos da "SuperMulher",  emitidos nos anos 80 na RTP, em que Lynda Carter dava corpo (e pouco espírito) à intrépida amazona, conseguiram entusiasmar por aí além a lusa juventude (mais elas que eles, atendendo a que mulheres com super-poderes  não havia  muitas...).
 
 
Lynda Carter, no papel de Wonder Woman
 
Ao invés do que aconteceu nos EUA, onde a série surgida em 1941, em versão  comics mensal e depois em strips nos jornais,  foi  logo  um grande sucesso, mantendo-se ininterruptamente até  hoje.
Sabia-se até agora de uma vaga ligação  desta heroína  ao mito das Amazonas, povo de mulheres guerreiras, que entroncava bem na necessidade em  oferecer às raparigas norte-americanas um bem sucedido e popular modelo de valentia e afirmação feminina. Sabia-se também do criador da série, William Moulton Marston (1893-1947), que assinava Charles Moulton e que terá escrito  todos os argumentos da série até falecer em 1947.
 
 
William Moulton Marston
 
 
Mas muitas outras particularidades ficavam por explicar. Sobretudo para quem leia as primeiras aventuras, justamente as que se publicaram entre 1941 e 1947, a tendência absolutamente inédita no panorama da literatura juvenil da época (e mesmo dos nossos dias), da nossa "Super-Mulher" se ver envolvida, página sim página não, em cenas de bondage. Não existe rigorosa tradução portuguesa para a expressão bondage. Submissão? Escravatura? Servidão? Mas o ponto também não é especialmente relevante. Basta ler as cenas – que são constantes em todas as aventuras –  em que Wonder Woman ou está amarrada com cordas ou correntes ou se vê confinada em espaços minúsculos, ou surge com os olhos vendados  ou liberta alguém na mesma situação, para se perceber a obsessão de Marston com o tema. 
 
 
 
 
 
Algumas destas interrogações e curiosidades vieram recentemente a receber uma nova interpretação, devido à revelação de aspectos desconhecidos da vida de Marston. A responsável pelo verdadeiro reboliço que as novas revelações estão a causar entre os fãs de Wonder Woman é uma distinta professora de História da Universidade de Harvard, por sinal também colaboradora da New Yorker, de seu nome Jill Lepore. O livro intitula-se The Secret History of Wonder Woman (Alfred A. Knopf, 2014) e  acabou de sair. 
 

 
Jill Lepore é considerada uma especialista em História americana dos séculos XVII e XVIII, com dezenas de livros publicados e não menor número de prémios e distinções, sendo esta a sua primeira incursão na História Contemporânea. A verdade é que há um ponto comum em todas as suas obras: serem excelentes paradigmas da apelidada  "micro-história". Foi aliás a própria quem,  num artigo de 2001,  apresentou um manifesto em defesa da micro-história por confronto com o género histórico da "biografia" assente em 4 pontos:
(a) ao contrário da biografia, o pressuposto da micro-história quanto à história de vida individual  reside em como esta  última serve de alegoria para a cultura no seu todo;
(b) o interesse da micro-história reside na resolução  de pequenos mistérios na vida de certa  pessoa  como meio para explorar dada cultura;
(c) a biografia  tem que ver com protecção da intimidade,  enquanto que na micro-história todo o esforço é empregue para ressuscitar a vida dos que não deixaram registos abundantes (ou que deliberadamente apagaram esses registos);
(d) os  biógrafos tendem a identificar-se com os biografados enquanto que os micro-historiadores tendem a julgá-los.
No essencial esta escavação histórica das origens de Wonder Woman é um bom exemplo dos  quatro pressupostos da micro-história.
A ideia fundamental é a de que a criação de Wonder Woman se deveu a um propósito eminentemente político. E que a jovem amazona  foi pura e simplesmente inspirada em Margaret Sanger. O propósito político consistiu na reafirmação do feminismo na sociedade norte americana, que havia esmorecido,  pelo recurso à  imagem  da mais importante feminista do seu tempo, justamente Margaret Sanger. Esta foi responsável pela fundação da primeira clínica de controlo da natalidade nos EUA,  em Brooklyn,  e uma activíssima  divulgadora dos métodos contraceptivos e da medicina reprodutiva. A sua aventurosa vida, que envolveu nos anos 20 do século passado, uma passagem pela prisão por distribuir publicamente contraceptivos, terá servido de modelo para Wonder Woman.
Segundo Jill Lepore, a mensagem explicitamente feminista de Wonder Woman permitirá  preencher um vazio histórico no movimento feminista norte-americano que se registaria entre os  anos 20 e os anos 60 do século XX.
Mas qual terá sido a conexão que Jill Lepore encontrou para  associar  Margaret Sanger a Wonder Woman?  Aí só o brilho dedutivo da historiadora − cuja caução académica é indiscutível    e o seu exaustivo trabalho de pesquisa  nos podem convencer. 
 
 
 
 
 
 
Reconstruindo a vida pessoal e o percurso profissional de Marston pela mão de Lepore,  encontramos um retrato fascinante... mas bizarro! Marston  formou-se em Direito mas acabou por se doutorar em Psicologia  na Universidade de  Harvard e foi  aí que  tomou contacto com a  literatura feminista e as ideias de Emmeline Pankhurss e Margaret Sanger, a que desde logo aderiu.  Estudou depois com o famoso psicólogo alemão Hugo Munsterberg,  que curiosamente  defendia a inferioridade das mulheres... o que só reforçou as suas convicções feministas (e  que Lepore sustenta ser a inspiração  do arqui-rival de Wonder Woman, o perverso Dr. Psycho). Enquanto estudava com Munsterberg   inventou   o teste da pressão arterial sistólica que constituiu a base do mais tarde  famoso  detector de mentiras (invenção da qual não chegou a obter qualquer proveito material).  
 
 
Margaret Sanger
 
 
Na  academia, Marston ensaiou um sem-número de experiências   no campo da psicologia sensorial, concluindo, por exemplo,  através de apelidado “Love Meter”,  que a morenas são mais emotivas e excitáveis do que as loiras; escreveu livros sobre a emoções humanas e defendeu a ideia de que os impulsos da vida sexual considerados “desviantes” (como, por exemplo, o apetite sexual pela dominação ou pela submissão) são não só  normais como "neuronais", ou seja, resultam do funcionamento regular do sistema nervoso.
A fama de "guru" da psicologia levou-o a trabalhar para as Forças Armadas americanas, a ser contratado por Hollywood como consultor especializado quanto aos aspectos emocionais dos argumentos  cinematográficos (sustentava a superioridade da mulher no relacionamento amoroso).  Até que, após ter elogiado o papel dos comics na educação das crianças norte-americanas − em entrevista conduzida por Olive Byrne, que já então era sua amante, como a seguir se verá −, veio a ser convidado pelo então fundador da DC Comics como um espécie de relações públicas da editora.
Não tardou a propor a criação de uma “super-mulher”, que logo se tornou um sucesso de vendas.
 
 
 
 
 
Mas o mais curioso provém da vida pessoal de Marston e é isso que permite a Lepore encontrar o missing link com Margaret Sander.
Após a sua graduação em Harvard, Marston casou-se com uma mulher muito pouco convencional chamada Sadie Elizabeth Holloway. Mais tarde, quando dava aulas na Universidade de Tufts, encontrou uma estudante de nome Olive Byrne por quem se apaixonou... e que era sobrinha de Margaret Sanger. Apresentou então à sua mulher um ultimato: "ou Olive vive connosco ou o casamento acabou". Acabou por ter filhos das duas mulheres, todos vivendo na mesma  casa. As crianças tinham três  pais: “ Both mommies and poor old Dad”, como dizia Marston. E quando alguém mais curioso perguntava acerca desta estranha combinação conjugal na casa de Marston, este dizia que Olive era sua cunhada. O trio doméstico, que hoje chamaríamos de " poliamoroso", manteve-se até à morte de Marston . Mas,  depois disso, Sadie e Olive viveram juntas com os filhos de ambas e de Marston até ao fim das suas vidas.
 
 
 
Foto da família Marston: William Marston ao centro, rodeado pelos filhos e pelas "duas mães", Elizabeth, a primeira à direita, sentada, e Olive, atrás de Marston,  de branco.
 
É esta complexa e estranha mistura de ideologia, vida pessoal e circunstâncias de tempo e lugar que está na origem de Wonder Woman, segundo Jill Lepore. Por um lado um contexto geográfico e temporal da 2ª Guerra, propício ao surgimento de uma personagem feminina com “super-poderes”,  dando  continuidade a Superman e Batman , surgidos em 1938 e 1939. Por outro lado, as convicções feministas de Marston, alimentadas  por um misto de admiração por Margaret Sander (cuja sobrinha era sua amante) e pela sua  crença na superioridade da mulher do ponto de vista emocional e  afectivo. Mas a tudo  isso acresceu  a sua própria experiência pessoal "poliamorosa"  e as características dos que com ele conviviam . A esse respeito, Lepore identifica vários pormenores:
(a) um dos “super-poderes” de Wonder Woman, o famoso laço que obriga os inimigos a falarem verdade, será uma variante do detector de mentiras);
(b) as braceletes de metal que evitam o fogo inimigo, outro dos “super-poderes”,  são idênticas às que Olive usava;
(c) as expressões típicas de Wonder Woman, como "suffering Sappho!",  emulam a adoração de Sadie pela poetisa  grega.
Persiste contudo um ponto controvertido e que não deixa de poder ser considerado   contraditório. Como compatibilizar as recorrentes cenas de bondage, em que Wonder Woman surge amarrada, confinada, submissa,  com uma visão feminista de libertação e de defesa dos  direitos das mulheres? A verdade  é que Marston era muito preciso com os ilustradores  acerca do modo  como as cordas e as correntes deveriam prender Wonder Woman ou os seus adversários : “This whole panel will lose its point  and spoil the story unless these claims are drawn exactly  as described here”.
Lepore interroga-se  e responde : “It´s feminism as fetish”.
E acrescenta que toda a iconografia feminista − bem presente nas marchas, nos  protestos e nos panfletos ilustrados − exibiam a mulher aferrolhada, presa a grilhetas  e cadeados. Seria a expressão teatralizada da ideia de que, sem direito a voto, a mulher é escrava do homem. Muitas feministas do início do século representavam a luta das sufragistas como quebrando as correntes que as amarravam. Aliás, foi isso mesmo que Marston sempre sustentou quando interrogado sobre o excesso de bondage nas aventuras da Mulher-Maravilha: “quando Wonder Woman está acorrentada, perde todos os seus super-poderes ficando à mercê da tirania  masculina”. É uma explicação plausível, diz Lepore, que acrescenta:  ver na submissão de Wonder Woman aspectos da cultura sadomasoquista dos dias de hoje é cometer o pecado do  anacronismo, o maior inimigo do historiador. Para analisar a questão teremos que olhar para o tempo e o para o mundo de Marston. Não podemos transportar a kink culture  dos dias de hoje e andar para trás! 
O ponto de vista de Jill Lepore é aceitável. Mas permanecem algumas interrogações. Saber , por exemplo, se a vida pessoal de Marston, designadamente o  seu "poliamorismo"  bem como o seu manifesto interesse nos temas das diferenças sexuais,   do ajustamento sexual e dos comportamentos ditos “desviantes”, não tiveram expressa projecção nas aventuras de Wonder Woman. Para além da mensagem feminista parece existir uma outra que traduzirá (é uma hipótese…) as teorias de Marston no campo da psicologia comportamental. É o que, por exemplo,  parece resultar  da vinheta abaixo, quando uma das personagens  exclama : "the only real happiness for anybody is to be found in obedience to loving authority". Mas Jill Lepore tem disso consciência quando, em entrevista recente, confessa que a sua investigação não resolve todos os enigmas e que "there´s clearly something else going on in Wonder Woman, too" !
 
 
 
 
Quando Marston morreu, apesar de Olivia se ter oferecido à DC Comics para continuar a assegurar as histórias de Wonder Woman, a série acabou por ser entregue a outros argumentistas. Mas rapidamente se transformou numa caricatura daquilo que tinha sido a ideia original de Marston: juntaram-na à poderosa Justice Society of America, com Batman, Green Lantern e outros super-heróis, no papel de... secretária.
 
Ricardo Leite Pinto

 

 

7 comentários:

  1. Creio que a atriz que a encarnou era a mesma que fazia de mulher do chefe da esquadra na famosa e saudosa Balada de Hill Street não?

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    1. Creio que não. Mas, se vir a sua biografia, Lynda Carter foi «escalada» para ser uma das «coelhinhas da Playboy» que aparecem no Apocalypse Now:

      http://en.wikipedia.org/wiki/Lynda_Carter

      Cordialmente,

      António Araújo

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    2. Anónimo, só posso supor que nunca viu a Balada de Hill street e que para além disso nem sabe fazer uma simples pesquisa no google ;). Ou apenas terá querido dialogar com o malomil.

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  2. Todas as hipoteses estão em aberto e as suposições tambem.Talvez o Juiz Carlos Alexandre alertado por si como anonimo inicie uma investigação que culmine com mais uma espetacular prisão!Ha varios potenciais crimes dos quais e talvez o mais grave o de não ter parado para ir ao google.Pena a pena de morte não se aplicar nestes casos.

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  3. Curiosamente este mesmo assunto foi objecto de um longo artigo na New York Review of Books, na edição de 6 de Novembro, disponível em papel nalgumas tabacarias de Lisboa. Se tiver curiosidade pode ver o artigo neste link:
    http://www.nybooks.com/articles/archives/2014/nov/20/wonder-woman-weird-true-story/?insrc=whc

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  4. É engraçado que ainda ontem comprei uma caneca com a temática da Wonder Woman.

    Divulguei:

    http://malomil.blogspot.pt/2014/11/a-verdadeira-e-estranha-historia-de.html

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