sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Rodrigues dos Santos: a sexualidade das onomatopeias (4)

 
 
 
 
Da onomatopeia como uma das belas-artes
 
Como temos visto, a José Rodrigues dos Santos falta cada vez mais vigor e potência, na triste andropausa literária em que está mergulhado. Mas, como acontece a alguns cavalheiros de certa idade, que quando jovens se entregaram aos maiores sensualismos e lubricidades, JRS arranjou, no entardecer da vida, compensações e alternativas. Poderia ter-lhe dado para a filatelia húngara ou para a BD de Manara, para as colegiais japonesas ou para a pesca do safio, mas, além de escrever estes livros infantis, José encontrou outro hobby paliativo: a criação doméstica de onomatopeias. Cuida delas no logradouro de sua casa, pastoreia-as ao som de uma flautinha e solta-as de quando em quando, como aos gases que dão mote a um soberbo diálogo do bastante gasoso A Vida Num Sopro (na página 30, quando Amélia conta que o pai “morreu com os gases”, Luís Afonso pergunta “- Quais gases?”; sem se desfazer, Ana Amélia responde: “- Os da guerra, claro. O papá era cabo no regimento 10 aqui de Bragança.”). 
         Na História da Literatura, é frequente um livro definir-se pela frase de arranque, que as regras mandam ser breve, mas marcante e incisiva. A Recherche de Marcel Proust começa com “Durante muito tempo fui para a cama cedo.”; Albert Camus principia L’Étranger com um cortante “Hoje, a minha mãe morreu.” É avassalador o início de Anna Karénina, de Léon Tolstoi: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes são-no cada uma à sua maneira.” Pois bem, alinhando pelo diapasão clássico dos grandes mestres, José dos Santos abre magistralmente O Sétimo Selo da seguinte forma:
Crrrrrrrrrrrr.”
Exactamente isso: Crrrrrrrrrrrr. Nessa mesma primeira página de O Sétimo Selo, a que começa as hostilidades, temos mais quatro Crrrrrrrrrrrr. Trata-se, aparentemente, do barulhinho próprio das comunicações-rádio, que José Rodrigues dos Santos, ciente da indigência dos seus recursos estilísticos, utiliza para imprimir dinamismo e vivacidade à narrativa, criando “ambientes” cinematográficos série B que o leitores consigam visualizar. Com simples descrições não íamos lá, não há estilo e talento que permita dispensar a flatulência onomotapaica. E assim, engrenada a onomatopeia, é só pô-la a render. Crepitam mais quatro Crrrrrrrrrrrr na página 12, outros três Crrrrrrrrrrrr na página 13. Solitário, apenas um Crrrrrrrrrrrr na página 16. Mas, logo na página seguinte, somos recompensados com mais um Crrrrrrrrrrrr e, em versão long-play, um potentíssimo
Crrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr.
Incomoda os ouvidos? Estes livros não são para meninos. É assim mesmo, cinquenta e cinco vezes teclou Rodrigues dos Santos na letra “r” do alfabeto. Mas, temos de admiti-lo, aliviou uma sonora onomatopeia. Valeu o esforço. Não saciado, volta a escrever cinco vezes, na página seguinte, Crrrrrrrrrrrr. Um derradeiro Crrrrrrrrrrrr na página 19 e, folhas depois, ouve-se um pesado compasso: Bump-bump, bump-bump, bump-bump. Batuques na selva, sons africanos? Não, é o pulsar do coração de Howard Jawson, em cadência acelerada. Mal avançamos duas ou três páginas e somos varados por uma substância psicoactiva ilícita: Crack. O barulho de um tiro. Crack. Novo disparo. Crack. E o último, concludente, disparado à queima-roupa na testa do moribundo. Crack.  
Regressando em Fúria Divina, Rodrigues dos Santos fez sair novamente da toca o seu rebanho de onomatopeias, que aparecem em fila indiana, muito compostas, prontas para a fucking acção. Ploc (assim fazem as pistolas disparadas com silenciador); Clic (caiu a linha telefónica); Paf (já lambeste uma estalada). Toc. Toc. Toc., toca o martelo na mesa (p. 74) ou os dedos na porta (p. 88). Pssst!, é o vendedor da loja de cachimbos de água a convocar o Ahmed. Pak (caiu o martelo com estrondo); Trrrr-trrrr… trrr-trrr… (chamam ao telemóvel); Click (a chamada foi abaixo); Crrrrrrr Crrrrrrr Crrrrrrr (calma, desta não são tiros de metralhadora, mas um telemóvel a tocar a meio da noite). Coff! Coff!, tosse Tomás em Lahore. Clac, fecha-se a porta da cela, nas costas do condenado. Crrrrrrr, quando o telefone toca, apitando de novo, e por três vezes, na página 314 (em Fúria Divina, a expressão Crrrrrrr  é arranhada vinte e duas vezes, batendo por um ponto os vinte e um Crrrrrrr de O Sétimo Selo). Pah. Pah., é o som do punhal quando apunhala e mata. Triiimmm, alguém bate à porta. Tac-tac-tac-tac-tac, temos metralhadora à solta na página 452. Pah. Pah. Pah., regressou o punhal cantante? Não, é só uma pistola Walther a fazer misérias na narrativa. Mais uns toques para a galeria das sonoridades telefónicas: Trrr-trrr (móvel) e Tut-tut (fixo). Na ponta final, há tiroteio em Manhattan, com Pah para lá e Pah para cá. Página 559, ouvem-se os disparos: Pah. Pah. Pah. Pah. Pah. Cinco balázios. Ahmed tomba na ambulância que levava a bomba nuclear mas a questão só ficará arrumada à rajada; a metralhadora então avança Crack-crack-crack-crack-crack, e acabou.
         Esta pulsão onomatopaica de Rodrigues dos Santos tem duas causas. A primeira, e mais óbvia, é do foro sexual e ficamos por aqui. A segunda é do domínio gastrointestinal, devendo-nos lembrar que, em A Fórmula de Deus, Tomás é acometido por um ataque de diarreia após jantar em Teerão, o mesmo acontecendo com o presidente dos Estados Unidos, concluída uma reunião na Casa Branca com um alto funcionário da CIA (p. 337). Já antes, em A Filha do Capitão, a família Silva Brandão ficara negativamente impressionada com os “excrementos e rios de urina que deslizavam rua abaixo” pela capital do país, a ponto de o patriarca Rafael proclamar, com a sabedoria própria da aldeia da Carrachana: “Esta cidade está cheia de merda” (p. 27). Na mesma obra, a higiene dos Brandões é meticulosamente analisada e escrutinada. Até certa altura, “as necessidades eram feitas de cócoras no quintal, atrás da pocilga” e “limpar o rabo foi um conceito desconhecido nos primeiros anos” (a limpeza do rabo, sobretudo de idosos, é um conceito muito conhecido e presente na obra romanesca de Rodrigues dos Santos, como O Sétimo Selo, p. 81 e p. 327, ou A Fórmula de Deus, p. 461). Depois, verificou-se um progresso sanitário, quando o filho João começou a comprar por dez réis O Século para “sondar as propostas de emprego e conhecer a evolução dos jogos do Football Club Lisbonense”. Os mais novos passaram então a “usar as folhas gigantes do jornal para se limparem depois de defecarem, mas os pais não foram em modernices”. O patriarca Rafael, por ser analfabeto (sic), continuou a não manusear ou a passar os olhos pelo periódico lisbonense e Mariana, sua mulher submissa, “partilhava o mesmo ponto de vista” (pp. 58-59). Encarcerado numa prisão egípcia, o jovem Ahmed de Fúria Divina “urinou longamente para o buraco fétido”, a retrete colectiva onde “o fedor a fezes era especialmente forte”, registando-se ainda “uma nuvem de moscas a zunir em torno da latrina” (“as moscas zuniam em fúria sobre o balde” em A Vida Num Sopro, p. 512). Será aí, junto à latrina, que, à falta de espaço alternativo, o pobre Ahmed pernoita, adormecendo derrotado e horrorizado, e com um esgar enojado. Saíra do seu lugar a meio da noite, após ter sentido a “bexiga apertar” e a “necessidade de urinar” (p. 224). Até em obras mais recentes, como O Homem de Constantinopla, há uma bexiga a apertar, mas devido a um ataque de tosse (p. 169), e nunca nos esqueçamos “do bebé que ronrona e dorme e come e defeca e ronrona e dorme e come e defeca”, fazendo tudo isso na página 80 de O Sétimo Selo. Em A Vida Num Sopro, dois amigos discutem os avanços verificados na afirmação dos direitos das mulheres, dizendo que, com tanto progresso, só faltava “vê-las mijarem de pé!” (p. 138); nessa mesma novela, o protagonista é preso pela polícia política de Salazar e, na prisão, apresentam-lhe um “cocktail putrefacto de odor a mofo misturado ao fedor ácido da urina e das fezes” (p. 510).  Neste apontamento gástrico-urinário, recordemos ainda que, na página 55 de Fúria Divina, existe uma interessante discussão sobre se as baratas sopram vento na língua de Montaigne (“Oiça lá, as baratas peidam-se em francês? Não, pois não?”). Ah, aparece também uma rã que se solta n’A Fórmula de Deus (“não há uma rã neste planeta que seja capaz de dar um peido sem que nós saibamos”, p. 61; na tradução americana, "A toad can't fart anywhere on this planet without us knowing it": The Einstein Enigma, p. 41).
Provavelmente existe uma relação causal entre o declínio do sexo e esta monomania das onomatopeias. De facto, quanto mais rareiam as alusões ao comércio carnal mais frequentes são os Crrrrrrrrr e os Crack-crack. Às tantas, a crítica maldosa topou que Rodrigues dos Santos andava a abusar deste recurso de estilo e, obviamente, começou a malhar. Ora, como bem sabemos, sempre que apanha nas orelhas José encolhe-se. Após ter levado muita vergastada no lombo à conta dos Crrrrrrrr e dos Tac-tac-tac, de José Rodrigues dos Santos nunca mais se ouviu uma onomatopeia. Caladinho, nem um pio. Em A Mão do Diabo, obra mais recente, aparecem, como Dupont et Dupond, “um zumbido e um estalido” (p. 13) ou “um ruído metálico” (p. 16), ou um “barulho de um metal a rodar no interior da fechadura” (p. 17),  e ainda “duas estaladas” (p. 19), para não falar num “estampido atrás dele” (p. 188), num “zumbido que cortara o ar” (p. 189) ou num “estampido distante” (p. 195), ambos provocados por tiros de uma pistola. Também um martelo a bater na mesa (p. 466), sem qualquer onomatopeia a acompanhá-lo. Não era assim o Rodrigues dos Santos de antigamente: o zumbido seria certamente Zzzzzz, o estalido Plac, o ruído metálico Tzzzim, a dupla estalada soaria Paf-paf, os tiros alternariam entre Ploc (pistola com silenciador), Pah (pistola sem silenciador) ou Crack-crack (metralhadora). Aqui, em A Mão do Diabo, já não há nada disso: “soou um tiro” (a cabeça do segurança do banco ficou desfeita “como uma melancia em pedaços”) e os assaltantes “ouviram sirenes a uivar no ar” (pp. 305-307). Onomatopeias de tiros e sirenes uivantes? Nem uma. Em 2008, n’A Vida Num Sopro, com jeito ainda se apanhava uma ou outra onomatopeia, aqui e ali (“Uma bosta tombou da traseira do bovino sobre o empedrado da rua com um ploc espalhafatoso”, p. 33). Agora, JRS está em black out onomatopaico. Silêncio total. No seu último livro, A Chave de Salomão, há um clic  e um ploc, mais nada.         

 
 
As personagens: machos e fêmeas
 
Quanto à construção das personagens, nota-se que o universo feminino de Rodrigues dos Santos é frequentemente iluminado pelo brilho das estrelas de cinema: a sueca de O Codex 632 tinha cabelos enrolados “à Nicole Kidman”, a americana de Fúria Divina é “parecida” com Meg Ryan, a russa de O Sétimo Selo ostenta lábios “à Natasja Kinsnki”, a italiana de O Último Segredo apresenta olhos azuis profundos e límpidos “à Jacqueline Bisset”, a coimbrã Maria Flor do recentíssimo A Chave de Salomão é tratada por “a Jennifer Connely de Portugal”. Em A Fórmula de Deus surge Angelina Jolie, de passagem, numa curta aparição e, n’O Anjo Branco, Guidinha era conhecida como “a Lollobrigida de Espinho”. Até Betty Boop aparece, fazendo de Beatriz Costa na revista A Vida Num Sopro.
O universo masculino, em contrapartida, caracteriza-se pela boçalidade militante. Tomás é descrito frequentemente como “um garanhão” e as conversas de homens seguem a pauta javardola, lapidarmente expressa em O Sétimo Selo: “ele era homem e os homens são bons para a farra” (p. 45); “um homem é um homem”, diz José a Mimicas em O Anjo Branco (p. 527). Ou, como bem observa a Amélia d’A Vida Num Sopro, as coisas de rapazes “são coisas de brutos” e os homens, com bastante frequência, fazem “figura de macacos” (p. 45). Olhando da janela de casa para uma “figueira lacrimante”, possivelmente uma alusão velada à figura bíblica do traidor Judas, Tomás medita sobre a existência humana e o seu caso amoroso com a sueca Lena, sendo ele casado com uma doce Constança e pai de uma menina com trissomia 21, de quem as outras crianças fugiam nos parques infantis. Dilacerado pela culpa, martirizado pela vergonha, resolve a questão a dois tempos, interrogando-se e fungando-se: “O que podia ele fazer?, interrogou-se. Era homem; e como pode um homem dizer não a uma mulher daquelas? Fungou.” (O Codex 632, p. 188). Na página seguinte, prossegue a reflexão pessoal, onde avultava a excepcionalidade da gentil Lenita: “Sempre ouvira dizer que as mulheres de seios grandes não eram particularmente boas na cama; mas, se isso era verdade, Lena constituía certamente a grande excepção” (p. 189). Em Ipanema, no Rio de Janeiro, Tomás Noronha ouve um pai a aconselhar à filha a praticar sexo oral ao marido, com o argumento experiente: “os homens gostam disso, meu bem” (O Codex 632, p. 86). Além de gostarem disso, há homens que gostam de escrever sobre pais que dão conselhos sexuais orais às suas filhas, julgando que é desta forma tão básica, tão óbvia e tão simplória que conseguem transmitir aos leitores os lugares-comuns e os clichés instalados em torno do deboche carioca. Mais grave ainda, há leitores – e leitoras – que apreciam e pagam por estas pinceladas tropicalistas kitsch, pintadas com a boca e escritas com os pés, mas jamais pensadas com a cabeça. A alarvidade máscula, note-se, não morre na praia de Copacabana nem vive apenas do outro lado do Atlântico. Ao levar o amigo Filipe a um hospital lisboeta, em A Mão do Diabo, Tomás consola piedosamente o moribundo dizendo-lhe que dentro em breve estaria bom, apto a “dar umas pinocadas às enfermeiras”. Em A Fórmula de Deus, um director principal da CIA e Tomás Noronha discutem, por mais de uma vez, se Ariana será mesmo, como dizem, uma “deusa na cama” (uma “goddess in bed”, na tradução americana: The Einstein Enigma, p. 51). Regressado de uma sessão de radioterapia, o canceroso pai de Tomás, um catedrático de Matemáticas sedento de netinhos, aconselha o jovem: “toca a pôr os pés ao caminho, arranjares uma miúda jeitosa e, pimba, fazeres-lhe um filho.” Muito pimba, de facto. Os homens falam das mulheres como “brasa”, “uma pin-up”, “gatona”, “boneca”, “bombshell” ou “belo naco”, arrotam e bebem cerveja, enquanto dizem vários “porra” e trocam mimos como “cabrões” ou “filhos da puta”. Além disso, “os homens são todos iguais” (A Vida Num Sopro, p. 266), como se um inescapável destino os condenasse a comportarem-se como homens, ou seja, como bestas. Num breve diálogo d’A Vida Num Sopro, o brutamontes Francisco Rodrigues, que tinha “corpo de gorila” e “linhas goriláceas no rosto”, não gosta que Juanito lhe chame Paco, e demonstra o seu desagrado tratando-o por “ó merdoso” e “ó paneleiro”, dizendo “Paco porra nenhuma, hem?”, “acaba lá com essa merda de me chamares Paco”, “cala-te com isso, paneleiro”, para concluir com um “Cabrão!”. De seguida, Francisco meteu-se numa camioneta com um italiano, a quem tratava por “maricas” e, a meio do percurso, “fungou e escarrou lá para fora.” (p. 332). Voltará a fungar e a cuspir mais adiante, um pouco antes de chamar “mariconços” e “paneleiros” aos seus camaradas legionários na guerra civil espanhola  e de prosseguir a sua actividade favorita: violar as mulheres dos rojos. Um dia, porém, uma das mulheres violadas passa a entregar-se-lhe de livre vontade, ficando Francisco – e nós – perplexo pelo modo como a “ardente Rosa Fuentes” o tratava, “abraçando-o com intensidade, acariciando-lhe as costas, beijando-lhe os lábios, digladiando-se com a língua, abrindo-lhe o calor do ventre” (p. 448). Além disso, Rosa Fuentes mergulhava a boca na erecção de Francisco (“mergulhando a boca na sua erecção”), sendo, pois, uma mulher “cheia de iniciativa”. “Submetia-se-lhe com prazer”, o que é sempre vantajoso para um homem, “suspirando e gemendo, soltando ais e obscenidades em castelhando, vagindo descontroladamente no auge da entrega”. Além de vagir e soltar ais e obscenidades em castelhano, não se limitando a acariciar-lhe as costas ou a dar mergulhos bucais, Rosa Fuentes cozinhava. Não era uma cozinheira de mão cheia, mas os seus pollos fritos assemelhavam-se a cozido à portuguesa e as suas paellas a feijoada à transmontana (p. 448). Em conclusão, Francisco Rodrigues amancebou-se com Rosa Fuentes e, deste modo, “passou a violar menos viúvas de rojos”. Quando o fazia, por imperativo ideológico ou em estado de necessidade, tinha aliás o cuidado de as violar nos pinhais das redondezas, não as trazendo para o casebre que agora partilhava com a espanhola. Em Tarragona, ainda violaria depois duas republicanas, mas, graças aos ensinamentos e às paellas de Rosa Fuentes, aprendera que, na vida humana, “o sexo forçado não era a mesma coisa” (p. 448). Pois não: regressado de uma batalha, Francisco encontra Rosa a gemer na cama com outro homem e, como lhe repugnava agora o sexo à força, decidiu estrangular os dois.       
Para humanizar as personagens masculinas (as femininas não precisam, é só falar de curvas e seios arrebitados) e para cativar os leitores mais ensonados, Rodrigues dos Santos traz questões sociais e problemas do quotidiano para o interior dos seus romances. Porém, excede-se duas oitavas no timbre melodramático. O seu herói, Tomás Noronha, nascido em Castelo Branco, com uma bisavó francesa de quem herdara os olhos verdes, reside no concelho de Oeiras e, após ter leccionado no ensino secundário, faz o doutoramento a custo, tornando-se professor de História na Universidade Nova de Lisboa, à Avenida de Berna. Possui um veículo ligeiro da marca Peugeot, é casado com uma Constança e pai de uma menina com síndrome de Down (“come que nem uma alarve”, diz Tomás da filha, n’O Codex 632, p. 18, mas a miúda vinga-se, chamando-lhe “grandessíssimo cabrão”, depois de terem ido visionar o filme Toy Story 2 ao Cascaishopping). A filha do casal, que além de trissomia 21 enfrentava “uma infindável panóplia de problemas”, acaba por morrer de leucemia mieloblástica aguda, sendo ainda criança. “Não há dor maior do que a alguém que perdeu um filho.”, assim começa o trágico capítulo XIX de O Codex 632. Ao saber da morte da filha, ainda criança, Tomás sente que jamais houvera uma menina como a sua e que “nunca um cardo assim se pareceu tanto com a mais bonita flor do prado” (p. 539). A referência à fealdade dos cardos, em contraste com a beleza das flores do prado, será uma alusão ao facto de a menina ter trissomia 21? Para quê comparar aquela criança a um cardo? E agora, José?
Entretanto, Tomás mantivera uma ligação extraconjugal com uma rapariga estrangeira e nova, também quase criança. Tratava-se da nossa conhecida Lena, a sueca das sopas de peixe, e esta relação fogosa porá termo à constança do seu matrimónio. Saindo a mulher e a filha de casa, de forma civilizada e habitual nestas situações de ruptura (“filho da puta” e “grande cabrão”, p. 274), Tomás entra num período da vida em que fala sozinho diante do espelho do quarto  de banho, “procurando metáforas sobre si e sobre o seu casamento”. Entre as várias metáforas a que recorre, “a sua favorita era a de que ele era um icebergue e a relação com Constança ameaçava tornar-se um Titanic” (p. 279). E assim foi, de facto. Mas, pior do que essa tragédia naval, é a frase que, n’O Codex abre um parágrafo da página 280: “Freud observou certa vez que o amor é uma redescoberta”. Uma vez divorciado, Tomás manterá, em freudianas redescobertas, diversos affaires inconsequentes com mulheres de várias nacionalidades, enquanto o pai morre em Coimbra, vítima de cancro no pulmão devido ao tabagismo (no leito de morte, a esposa ia “turturilhando palavras meigas”). Por fim, apaixona-se pela directora do lar de idosos onde interna a mãe, doente de Alzheimer e senhora muito praticante de assuntos religiosos. Numa das suas derradeiras aventuras, A Mão do Diabo, que trata da crise económico-social, Tomás é despedido da Universidade e passa longas nas filas da Segurança Social, já não em busca da fórmula de Deus ou do ADN de Cristo mas de um mais prosaico subsidizito de desemprego.  
 
 
 
 
 
 
Em regra, os homens JRS são apalermados e patetitas, insensíveis e futeboleiros, pouco dados a leituras, preferindo falar dos atributos femininos. Apesar de ser um docente universitário, o professor Tomás Noronha não foge à regra. Para explicar o xadrez politico ibérico e as delicadas negociações diplomáticas que conduziram à celebração do Tratado de Tordesilhas, em 1494, Tomás refere que o Papa de então era espanhol e, por conseguinte, tudo não passara de uma partida arbitrada “por um juiz subornado pelo adversário e disposto a anular quaisquer golos da nossa equipa e a inventar penalites contra nós” (O Codex 632, p. 129). Note-se que, n’O Sétimo Selo, este historiador de renome mundial desconhecia que a sede da OPEP se situava na Europa (p. 87) e, mesmo estando em plena Praça Vermelha, não sabia distinguir o Kremlin e a Catedral de São Basílio (p. 177). Para todos os efeitos, estamos a falar de um historiador doutorado que só no Rio de Janeiro, no Real Gabinete Português de Leitura, “verificou que a História da Colonização Portuguesa do Brasil  tinha sido dirigida e coordenada por Malheiro Dias e impressa pela Litografia Nacional, no Porto, em 1921” (O Codex 632, p. 100).
A situação mais surreal acontece logo n’O Codex 632 – e não estamos a falar da sopa de peixe. Tomás, um especialista em enigmas internacionalmente reconhecido, doutorado e professor universitário de História, tem de responder à seguinte questão: “Qual o eco de Foucault pendente a 545?” Que faz o nosso artista? Põe-se a vasculhar a obra de Michel Foucault, passeia na Praia de Carcavelos com um colega filósofo, que numa só conversa enumera, com apelidos e nomes próprios, Jacques Lacan, Jacques Derrida, Jean Braudillard, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Maurice Merleau-Ponty, Immanuel Kant, Edmund Husserl, Martin Heidegger, Karl Popper, além de Ricoeur, Marrou, Veyne, Collingwood e Gallie. Estava o professor Saraiva a desfiar este relambório quando chega ao nome de Michel Foucault, que Tomás confessa, envergonhado, nunca ter lido. Para o afrancesado Saraiva, Les mots et les choses tratava-se “talvez do texto mais kantiano de Michel Foucault” (p. 231). Frente a uma bica fumegante (“Se calhar, também ia num cafezinho”), o professor Saraiva fornece então ao professor Noronha uma lista das obras de Foucault, que aquele anota atentamente, além de uma extensa nota biográfica, despejada entre as páginas 230 e 232 (“O que quer que lhe diga, mon cher? Michel Foucault nasceu em 1926 e era homossexual. Depois de descobrir Martin Heidegger deu de caras com Friedrich Nietzsche (…). Tinha SIDA. Morreu no Verão de 1984”). Com esta informação preciosa, Tomás Noronha vai no encalço de Michel Foucault. A perseguição, obsessiva, dura desde a página 224 à 285, ou seja, ocupa 61 páginas d’O Codex 632. Uma dia, quando vai visitar Lena para mais uma sessão de sexo, esta espreita para um saco de plástico e pergunta-lhe, à entrada de casa: “Ainda tens aí o Foucault?”. Também ela, a dedicada Lena, se dedicava afanosamente a tratar do Foucault, lendo até bibliografia secundária, que, pasme-se, é citada no romance: “o The Cambridge Companion to Foucault, de Gutting, viera parar-lhe às mãos, bem como o The Foucault Reader, de Rabinow, e o The Lives of Michel Foucault, de Macey” (p. 239). O filósofo francês torna-se uma companhia habitual de Tomás e Lena, visita de casa, a ponto de encontrarmos pérolas como esta: “O professor apossou-se da rapariga e possuíram-se ali, sobre o sofá, ao lado do aquecedor, Michel Foucault espalhado pelo chão” (p. 240). Andam nisto, repete-se, durante mais de sessenta páginas do livro. Na página 285, finalmente, Tomás entra num centro comercial e vai à livraria. Percorre as estantes, num trecho saboroso em que Rodrigues dos Santos homenageia os seus colegas, dizendo, um por um, os nomes dos escritores e dos seus livros, desde Amin Maalouf (são citados O Rochedo de Tânios e Samarcanda) a José Eduardo Agualusa (Nação Crioula), passando por Isabel Allende (é referida A Filha da Fortuna), Arundhati Roy (O Deus das Pequenas Coisas) e Mario Vargas Llosa (cita-se Pantaleão e as Visitadoras). Ao percorrer as estantes, Tomás Noronha encontra Umberto Eco, com O Nome da Rosa e – espanto! – O Pêndulo de Foucault. O que fez Tomás, perante esta fantástica descoberta? Um “trejeito com a boca”, claro está. Quer dizer, foram gastas 61 páginas de papel, com conversas em Carcavelos e carradas de livros e citações, para que um historiador de renome conseguisse perceber, ao olhar para uma lombada de Umberto Eco num shopping center, que não era o filósofo Michel Foucault mas Léon Foucault, o físico do século XIX inventor do famoso pêndulo, a chave do enigma contido na pergunta “Qual o eco de Foucault pendente a 545?”. Por vezes, temos a sensação de que José Rodrigues dos Santos julga que somos parvos e está a gozar connosco. Tomás, um ás das charadas, mata a cabeça com o número 545 quando, logo de início, todos nós percebêramos que a solução se encontrava no conhecidíssimo pêndulo de Foucault. Depois, era só ir à página 545 do livro de Umberto Eco, que se chama… O Pêndulo de Foucault. Ao ver desvendado o mistério, o personagem americano, com carradas de razão, grita “Fuck!”. Um escritor de sucesso que coloca um historiador de renome a fazer uma figura destas é, no mínimo, tão inepto como a sua personagem. Fiat lux!,  pensou Tomás na livraria (e “sentiu-se iluminar”). Interrogou-se de seguida: “como pudera ser tão estúpido?”. Queres mesmo saber o que é ser estúpido? Pergunta a quem te fez as orelhas.  
Além da estupidez profunda, a ignorância de Tomás Noronha é de tal forma enciclopédica e monumental que, em A Fórmula de Deus, chegam a perguntar-lhe se já ouvira falar da CIA (p. 44), uma vez que, questionado sobre o que era o Hezbollah, o académico respondera evasivamente (“Não são os tipos do Líbano que estiveram em guerra com Israel?”, p. 57) e, ao falarem-lhe do Projecto Manhattan, indagara, como uma criança sabichona: “Não foi aí que fizeram a primeira bomba atómica?” (p. 61). No Tibete, Tomás recebe da boca sábia do monge Tenzing Thubten uma explicação básica, mas muito extensa, sobre o budismo (“O budismo tem as suas origens remotas no hinduísmo, cuja filosofia assenta…”, isto vai da página 397 até à 443). Logo ao fim de poucas linhas, Tomás, muito mentecapto, começa a levantar o dedo com dúvidas sobre a matéria (“Deculpe, não estou a entender”), mas o Mestre esmigalha-o num ápice (“Alguma vez leu o Tao Te Ching?”; “Uh… não.”). Aqui se vê a diferença entre os homens e as mulheres. Ariana, a companheira de Tomás, não só é mais subtil e profunda na conversa (“Então tenho de entrar pelo lado do Paradoxo EPR”, conclui ela, a dado passo), como se mostra mais delicada e cortês, acalmando o macho furibundo através de sussurros dissimulados (“Temos de aguentar”, “Tem paciência”). Terminada a aula, ao fim de quarenta e seis páginas, o bodhisattva sorriu. Nós também.
 
(Continua)
 
 

8 comentários:

  1. OBRIGADA!!! adoro estes posts, só mesmo aqui, os livros do José valem alguma coisa. Obrigada pelo trabalho.

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  2. Estou agora preocupada com que a minha mãe andou a ler!

    Estes textos são geniais, ri-me à gargalhada, mas ainda não me recompus da personagem do violador. No meio de tanta canastrice, essa parece-me demais.

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    1. Talvez a sua mãe possa dar uma opinião sensata sobre o livro já que afinal para além do AA só ela "aqui" o leu.

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  3. Uma maravilha, adorei. Não me ria tanto com texto já há algum tempo...

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  4. Nunca me tinha passado pela cabeça perder um minuto a ler JRS.
    Agora que li isto fiquei cheio de dúvidas. Vou ler.

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  5. não me ri, e texto tão risível só pode vir de alguém que escreve um post de 2 páginas, mas não edita livros. A inveja é lixada, e por si é risível. Desse para ser mais moderno e sem tanto Tolstoi pelo meio a tentar dizer que é culto (antigo) e talvez descobrisse que não só há onomatopeias em muitos escritores internacionais premiados por gente não presumida e preconceituosa, mas também (e estou a dar-lhe a dica para um post de 3 páginas) há quem abuse das fontes (tipo de letra, sabe o que é?) e altere formato, dimensão e tipo. A criatividade pode ir bem além (ou em si, vai até Tolstoi).

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